ser adulta aos 40 e vrau dá mais trabalho que aos 20 e poucos
ou: sobre como a vida mostra que ser uma adulta funcional demanda muito mais do que pagar boleto
Que sou uma mulher de 49 anos, talvez você já saiba. Se ainda não sabia, está sabendo agora. Estou numa fase da vida em que muitas das mulheres da minha geração e do meu convívio social também estão: temos filh_s em idade escolar, que ainda não têm independência para fazer as coisas sozinh_s, e pais e mães em um processo de envelhecimento tão assustador quanto, pelo menos no meu caso, penoso.
Não me refiro à minha mãe, ainda bem. Ela, felizmente, depois de passar por poucas e boas há uns dois anos, agora está ótima. Segue desfilando seus cabelos azuis turquesa por onde passa, dirige seu próprio carro, planeja uma mudança de casa, cuida de duas cachorras e busca, do jeito dela, nos ajudar como pode. Inclusive, tentando “não dar trabalho”, o que faz com que minha irmã, meu irmão e eu fiquemos possessos. É melhor que ela nos convoque para pensar junto as questões da vida dela, do que apenas tente resolver tudo sozinha e só nos acione quando a merda já subiu a níveis estratosféricos. Mas isso é outro assunto. Minha mãe, grazasdeusas, não é o problema.

Já meu pai… Bom, esse parece que já nasceu velho. Sempre precisou de cuidados e hoje, como eu disse no poema dia de aniversário1, em seus “muito improváveis oitenta e quatro anos”, está acamado e totalmente dependente de pessoas que cuidam dele 24 horas por dia, 7 dias por semana. Isso quer dizer que, além de ser responsável pelas questões da vida do meu filho, de tentar manter uma relação próxima e saudável com a minha mãe [coitada, com ela quase sempre vem um já já eu te ligo que cai no esquecimento em meio ao bololô que ocupa minha cabeça — desculpa, Mãe!], trabalhar em um emprego fixo, pegar trabalhos por fora pra ajudar nas contas, seguir meus projetos de escrita [sim, tem livro novo em processo!], tentar manter a rotina de exercícios em dia e a cabeça minimamente no lugar, entre um monte de outras coisas, eu preciso lidar com o processo de emorrecimento [alerta de palavra inventada] do meu pai, que parece cada dia mais acelerado. E isso é muito, muito duro.
Papai nunca foi, desde que o conheço, uma pessoa de muitos amigos. Sempre fez um grande esforço para que as pessoas interferissem o mínimo possível na sua vida, apelando – muitas vezes, inclusive – até para a grosseria. O isolamento era quebrado por uma seleção muito restrita: eu, minha irmã, meu avô e seu amigo Walderêdo. Amigo esse que ele “herdou” do meu avô quando já vivia bastante apartado do convívio social. Minha avó e minha mãe ele meio que suportava, e ainda assim de um jeito meio ríspido e mais ou menos.
E por que estou contando tudo isso?
Porque hoje, junho de 2025, vejo meu pai como a pessoa mais sozinha do mundo. Ele está em cima de uma cama e não consegue mais sair pra nada, depende 100% de outras pessoas e eu, que sempre fui péssima de administração doméstica, preciso aos trancos e barrancos segurar esse rojão. Porque ele não tem amigos, não manteve relações outras na vida. A solidão que ele cultivou com tanto afinco está cobrando caro. A ele, com certeza, e a mim também. Não estou reclamando, não. Ou estou, sei lá. Mas acompanhar esse processo, ver meu pai perdendo vitalidade a cada vez que o encontro, e tão solitário, é bem, bem duro.
Este ano, meu quadragésimo-nono, está me botando pra pensar muita coisa. Inclusive, sobre meu próprio processo de envelhecimento, com o qual ainda estou tateando o caminho para lidar. Já dei uma palhinha disso aqui dia desses. Eu acho tão, mas tão difícil me ver como uma mulher de cinqüenta-fuckin-anos. Te juro, de verdade. Me olho no espelho e não vejo. Penso nas coisas que eu faço, e não consigo enxergar. Não sei, acho que é aquele lance geracional. Ou algum tipo de dissociação, mesmo. 50 são os novos ………………… (50, de fato, rs).
Espremida entre meu pai, nascido há mais de oito décadas, e meu filho, nascido há pouco mais de uma, encontro uma inequação. E eu nunca fui muito boa de resolver inequação. O lance é conseguir [1] cuidar de mim, [2] cuidar deles, e [3] manter a santíssima trindade: a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.
kkkkkkkkkk só pode ser piada. Numa boa, a única coisa tranqüila é saber que disso já posso desistir de cara. Menos uma preocupação.
a mente quieta… minha cabeça é um eterno meme do Pedro Vinício.
[imagem auto-explicativa abaixo]a espinha ereta: essa venho tentando, mas acho que sem tanto sucesso, já que minha amada mãe assim que me vê já manda o indefectível postura, Paulinha!
o coração tranquilo… bom, assim como você, eu moro no mundo, né? E a gente já sabe o que isso significa. Não há um segundo de paz nessa bagaça, seja por conta da escala 6x1, da jovem que morreu viajando, do genocídio na Palestina, da guerra na Ucrânia, da apreensão com as eleições presidenciais de 2026… cara, essa lista é longa demais pra fazer aqui. Não há coração tranquilo que resista.
[nota mental: fazer check-up cardiológico]

O melhor que posso fazer, eu acho, é seguir tentando navegar esse mar nem tão calmo. Elaborar esses processos, ver uma infância indo embora, uma adolescência chegando. Ver uma velhice carcomendo um corpo e uma mente sempre muito conturbados. Aceitar que a vida [também] é isso. E toda hora me pego pensando: dá bem mais trabalho ser adulta com 40 e vrau do que me lembro de ser com 20 e poucos. Ao mesmo tempo, agora eu tenho muito mais ferramentas pra lidar com o tipo de treta que aparece. Não sei se uma coisa compensa a outra, mas sei que a única alternativa a isso é a morte — e quem leu Artrópode2 até o final sabe que pretendo viver muitos anos. Ainda prefiro aceitar graciosamente [ou raivosamente, depende do momento] a aproximação inexorável do meu jubileu.
Deixo vocês com a primeira parte de dia de aniversário {um poema em duas partes}.3
schrödinger ii
meu pai
não tem caixa imaginária
em que possa ficar dentro
e no entanto e no entanto
é difícil saber se
nos seus muito improváveis
oitenta e quatro anos
está morto
ou vivo.
*
Obrigada pela leitura e até a próxima!
O poema dia de aniversário integra a zine essa vida inteira ou menos, que saiu em maio deste ano pela editora Lola Frita. Se quiser um exemplar, fala direto comigo. A tiragem foi minúscula e não temos previsão de reimpressão, no momento.
Artrópode saiu pela editora Patuá em 2024 e pode ser adquirido no site da editora e na Amazon. A citação mencionada está na página nº 171.
ver nota nº 1.
Cheguei pelo FP. Que bom ter lido este texto hoje. Obrigada.
Querida, é isso mesmo. Quem diria que os 40+ seriam tão difíceis? Mas fica a reflexão pra uma vida com mais amizades! Amei o poema do seu pai. Reserva uma zine pra mim?