Continue a nadar...
onde foi parar minha capacidade de me lembrar de coisas que acabei de pensar?
Cena 1. Casa de P. - Sala / Quarto1
Personagens: eu, P. [40+], e as vozes minha cabeça
Estou na sala de casa. Preparo a mochila para sair. Percebo que está faltando alguma coisa. Vou em direção ao corredor.
Entro no quarto. Olho em volta. Cadeira cheia de roupas empilhadas.2 Cama por fazer. Mesa de cabeceira entupida de livros, guias e um sortimento de coisas aleatórias. Escrivaninha. Armário. Minhasdeusasquequeeuvimfazeraqui. Volto pra sala, vejo minha mochila de trabalho perto da porta, lembro. Volto pro quarto. A cena se repete. Olho em volta. Cadeira cheia de roupas empilhadas. Cama por fazer. Mesa de cabeceira entupida de livros, guias e um sortimento de coisas aleatórias. Escrivaninha. Armário. Minhasdeusasquequeeuvimfazeraqui. Volto pra sala, vejo minha mochila de trabalho perto da porta, lembro. Volto pro quarto. Dessa vez, efetivamente sei o que vim fazer aqui. Tiro o carregador do celular da tomada ao lado da cama e levo comigo.
No caminho, paro no banheiro pra escovar os dentes. Dentes escovados, volto pra sala. Olho a mochila. Volto ao banheiro. Pego o carregador em cima da bancada da pia.
Guardo o carregador na mochila. Coloco a mochila no ombro, saio pela porta de casa. Sento no banquinho de calçar sapatos que eu mantenho próximo à porta de entrada. Largo tudo por ali mesmo, destranco a porta, volto pra dentro. Pego o par de meias que apoiei na mesa da sala antes de ir buscar o carregador.
Não encontro o controle remoto da TV. Vai ficar ligada até eu chegar em casa, mesmo. Espero que isso não acabe com a vida útil do aparelho. Taí uma esperança vã…
Tranco a porta por fora, sento no banquinho, calço a meia e o tênis, desço pelo elevador.
Saio pelo portão do prédio. Ato contínuo, me viro nos calcanhares e entro de volta. O elevador ainda está no térreo. Ufa, vai ser bem rápido. Eu detesto as escadas do meu prédio. As luzes só se acendem depois que você já subiu um lance inteiro. Busco a marmita na geladeira.
O elevador está no décimo andar. Putaquipariu por que esse pessoal sempre chama OS DOIS ELEVADORES? Desço de escada, mesmo, torcendo para ainda não ser dessa vez que eu vou quebrar o pescoço.
Saio pelo portão do prédio. Começa o dia.
Cena 2. Supermercado + Casa de P. - Cozinha
Faço uma lista de supermercado. Os itens são os seguintes:
Entro no supermercado com a lista no bolso. As peras estão lindas. Parecem deliciosas. Olha essa promoção de vinho. Vou experimentar. Nossa, como eu esqueci que estou precisando de uma pá de lixo? O baer-mate está num preço excelente, hein. O azeite, que anda pela hora da morte, também. Boas escolhas, P.!
Chego em casa. Tiro das sacolas reutilizáveis: seis peras, duas garrafas de vinho, uma de azeite, uma pá de lixo, três baer-mates, dois tipos de queijo, iogurte, tomatinho, macarrão e manjericão. Pronto, tudo arrumado em seus devidos lugares. Vou colocar a roupa pra lavar. Putamerda esqueci o sabão. O que mais eu esqueci? Tiro a lista, intocada, do bolso. Olho pra ela, incrédula. Maçã. De boas, fico só com as peras mesmo e tá tudo certo. Sal. Granola. Uvas. Café. A merda do sabão. Vou precisar voltar pra comprar essas coisas. E vai ter que ser antes do almoço. Preciso do sal pra fazer o macarrão, e do café pra não surtar.
Deixo a roupa pra lavar mais tarde.
[nota mental / tragédia anunciada: na volta, lembrar de tirar a lista do bolso antes de colocar o short na máquina.]
Cena 3. Quem é você?
Lembra do filme Procurando Nemo? O filme começa com ele, o Nemo, se perdendo. Marlin, o dedicado pai do peixinho, conhece, logo de cara, uma peixa muito simpática, solícita e sorridente: a Dory. Só tem uma pequena questão: ela sofre de um problema severo de perda de memória recente.
A cena em que ela e Marlin se conhecem é clássica: Marlin está desesperado, não encontra Nemo em lugar algum, e volta para o fundo do mar, onde colide com Dory. Dory, imediatamente, se propõe a ajudar e, nadando na frente, vai guiando o caminho em busca do barco que levou Nemo e… [!] Esquece quem é Marlin, o que ela estava fazendo, e o que aquele peixe-palhaço queria com ela.
Oi! Eu sou a Dory.
[aí embaixo a cena está em inglês, junto com o roteiro dela. você pode ver a mesma cena em português aqui]
Antes que alguém se preocupe genuínamente, melhor avisar: eu não tenho nenhum diagnóstico de nada disso. Nem de perda de memória recente, nem de nenhuma doença degenerativa, nadinha. Ainda bem. Mas boa parte da minha vida se resume a seqüências de cenas como as que descrevi nas Cenas 1 e 2. Um vai e volta eterno. Onde eu deixei o documento? Onde eu deixei a mochila? Onde eu deixei o controle da TV? Onde eu deixei ______________? [Oi, meu nome é Dory.]
Há uma sensação estranha, uma espécie de déjà-vu, que acompanha essas experiências. E um incontornável espanto quando encontro as coisas “perdidas” nos exatos lugares que designei para elas. Suponhamos que eu precise do meu título eleitoral. Minha primeira reação, antes mesmo de iniciar a busca, é um leve desespero [que muitas vezes se transforma num grande desespero] e, em casos mais extremos, uma paralisia.
Começo a procura por lugares variados. Bolsos, bolsas, gavetas e pastas. Daí tenho uma ideia brilhante. Vou olhar na pasta de documentos. Uau. Que surpresa. A P. do passado colocou seu título de eleitora na pasta catalogada com uma etiqueta: documentos civis. Me sinto uma idiota por ter duvidado da versão anterior de mim mesma, aquela que guardou o documento no lugar certo, precisamente onde deveria estar. Minha falta de confiança em P. me deixa furiosa. Sinto um alívio imenso. Lembro de respirar.
A Dory, entre muitas características — sendo uma delas um bom humor irritante [certeza de que essa peixinha é geminiana] —, tem esse lema: quando a vida te decepciona, qual é a solução? continue a nadar, continue a nadar… Af. Eu não paro de nadar, meu povo. Nunca. Com ou sem decepção. Só acharia mais prático não ficar dando tanta volta, tipo hamster na rodinha, a cada vez que saio de casa. Ou que preciso procurar um documento.
Verdade seja dita: muitas vezes eu não encontro, mesmo. A P. do passado nem sempre se lembra de colocar as coisas no lugar onde elas devem ficar.
Cena 4. Epílogo [?]
Estou há um tempão escrevendo este texto. Tipo duas semanas.
Eu tive um sonho, sabe? Nele eu nadava, nadava… Continuava a nadar, como aconselha Dory. Mas não sabia o que estava procurando. Angustiante. Acordei pensando: preciso escrever sobre esse lance da Dory e do continue a nadar. No sonho, cheguei a conclusões brilhantes e interessantíssimas. Desde então, toda hora me pego cantarolando continue a nadar, continue a nadar. Meu cérebro não aguenta mais essa musiquinha, mas ela volta em ciclos infinitos.
Sinceramente? Não me lembro qual era a grande revelação onírica. Não sei qual foi a conclusão que me fez acreditar que eu precisava escrever sobre ela. O pensamento “brilhante e interessantíssimo” que se apresentou a mim em sonho sumiu. Perdi a epifania. Desculpaê, não vou poder dividir esse lampejo genial com você. Quando eu me lembrar, quem sabe?
Continuo a nadar. Valeu, Dory ✌🏼.
🐟
Estou fazendo um curso de roteiro e minha cabeça está operando no modo “cenas” no momento. Desculpa qualquer coisa. 😁
segundo minha amiga B., armário montessoriano [contém ironia, rs …]




eu sou geminina com libra! hahaha mais um motivo para ter um humor oscilante
Geminianos tem um bom-humor irritante? Kkkkk
Querida, tbm me sinto assim. Perdendo tudo, esquecendo tudo.
O bom é que mesmo perdendo ou esquecendo você escreve. E escrever é um pouco nadar!